
Quando pela primeira vez pensei em utilizar óperas como material para alfabetizar crianças, acreditava no potencial que as grandes obras de arte tem de fazer eclodir sentimentos e isso tinha a ver com a concepção de escrita que permeia minhas convicções. Se parece lógico que não podemos conceber o ato de aprender a ler e escrever dissociado de um mundo de ideias, penso que esse ato deve ser associado a um mundo de sentimentos. Isso muda a ótica, e a qualidade do que se pode obter ganha muito.
Nem todos os alfabetizados chegam a esse nível. Se nem todas as pessoas que conseguem ler e escrever tem o que se chama de 'o dom' de saber colocar de forma transparente e cristalina o que sentem em uma folha de papel - escritor hoje é profissão- penso eu que isso é uma deficiência do modo como foram alfabetizadas, pela concepção pobre ou equivocada desse aprendizado.
Por isso a ópera, porque crianças que se alfabetizam partindo do pressuposto de que se aprende a escrever é para expressar sentimentos, jamais trilharão o caminho tortuoso das escritas sem sentido, do texto mecânico, pesado, "non sense". O que é, portanto, considerado um refinamento, um "up grade" da função de escrita, penso eu, ao contrário, está no ponto de partida, não é um ponto de chegada.
E a ópera desempenha melhor quer qualquer outra ferramenta a função de ensinar a escrever o sentimento, como nem mesmo outra manifestação de arte isoladamente é capaz: pela força emocional da música, pelo sentido de tramas profundamente absorventes, de uma literatura que alia pinceladas mágicas a um profundo realismo, pela dramaticidade de cenas inspiradas no vigor da música e pela pujança de personagens que se tornaram ícones da cultura universal.
Nada poderia ter um potencial expressivo tão rico. Nenhum outro material de alfabetização. Uma criança muito tímida estava assistindo certa vez a um dos ensaios da encenação da ópera na escola. Quando Turandot entra em cena, ela se encolhe, como era de esperar. Quando perguntada sobre o gostaria de fazer após assistir ao ensaio, diz: "escrever". "Porquê?", perguntamos. "Porque eu não quero falar", responde ela.
Descobriu o sentido da escrita.
Mas não o sentido da escrita dos fazeres, ou da escrita das ideias. O sentido da escrita espelho da alma - a verdadeira arte de dizer aquilo que seria pesado demais, bonito demais, emocionante demais, grande demais para dizer em voz alta. Assim sente o artista da palavra escrita. Escreve porque, parodiando o poeta, 'não pode mais suportar dentro do peito a sensação terrível de uma emoção que o empolga', aquilo cujo peso dito em voz alta seria insuportável para os ouvidos e cujo reflexo no retorno do eco da voz provocaria demasiada angústia para quem é demasiadamente sensível.
E AS CRIANÇAS O SÃO. Por isso são capazes de se utilizarem dessa ferramenta com a propriedade e a categoria dos mais competentes profissionais. E não por exceção ou dom, mas pela capacidade de dominar uma ferramenta básica para alguém do seu tempo, uma geração que não precisará de escribas ao longo da vida que lhe traduzam o que pensa, ou que não admite que lhe queiram ensinar o que sentir.